Entre o que vejo



Entre o que vejo de um campo e o que vejo de outro campo
Passa um momento uma figura de homem.
Os seus passos vão com "ele" na mesma realidade,
Mas eu reparo para ele e para eles, e são duas cousas:
O "homem" vai andando com as suas idéias, falso e estrangeiro,
E os passos vão com o sistema antigo que faz pernas andar.
Olho-o de longe sem opinião nenhuma.
Que perfeito que é nele o que ele é — o seu corpo,
A sua verdadeira realidade que não tem desejos nem esperanças,
Mas músculos e a maneira certa e impessoal de os usar.

Alberto Caeiro

A criança


A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe
Sabe como é que as cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em um ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.

Alberto Caeiro
Vós, palavras, de pé, sigam-me!
e se já fomos longe,
longe de mais, ainda se vai
mais longe, para fim nenhum.

Não clareia.

A palavra
só irá
arrastar consigo outras palavras,
a frase frases.
O mundo bem queria
definitivamente
impôr-se,
estar já dito.
Não o digam.

Palavras, sigam-me!
Para que nada seja definitivo
- nem esta ânsia de palavras
nem o dito e o contradito!

Por um momento não deixem
falar nem um sentimento,
que seja outro o exercício
do músculo coração.

Não deixem, digo-vos, não deixem!

E ao mais alto ouvido
nada, digo-vos, pode ser sussurrado,
que nada te ocorra sobre a morte,
deixa, e segue-me e sem clemências
nem amarguras
sem compaixão
não sinalizando
e não desprovida de sinais -

Uma coisa é que não: a imagem
na teia do pó, cascalho oco
de sílabas, palavras de morte.

Nem uma palavra de morte,
vós, palavras!

Ingeborg Bachmann
Nada mudou.
O corpo é sensível à dor,
precisa comer, respirar, dormir,
por baixo da pele fina corre sangue,
tem a provisão adequada de dentes e unhas,
ossos quebráveis e articulações extensíveis.
Nas torturas tudo isto é tomado em conta.

Nada mudou.
O corpo treme como tremia
antes e depois da fundação de Roma,
no século vinte antes e depois de Cristo,
torturas sempre as houve e haverá, só a terra ficou pequena
e o que quer que aconteça, é como se fosse aqui do lado.

Nada mudou.
Apenas há mais gente,
juntaram-se novas às velhas culpas,
reais, insinuadas, instantâneas, nenhumas,
mas o grito, com o qual o corpo por elas paga,
foi, é, e será o grito da inocência,
segundo o registro da escala secular.

Nada mudou.
Talvez apenas as maneiras, as cerimônias, as danças.
O gesto das mãos para proteger a cabeça
continua a ser o mesmo.
O corpo contorce-se, debate-se, tenta escapar,
cai redondamente, encolhe os joelhos,
torna-se roxo, incha, saliva e sangra.

Nada mudou.
Exceto o curso dos rios,
a linha das florestas, dos desertos e glaciares.
É nestas paragens que vagueia a alma,
parte, volta, vai e vem,
alheia a si mesma, intangível,
ora certa, ora incerta da sua existência.
Mas o corpo está e está e está, sem ter outra saída.

Wisława Szymborska
Escrevo o que ainda conheço
nomes de ruas pássaros árvores
monólogos de quem ainda te fala alto
é a minha voz ou a tua?
lá fora a chuva confunde-se com gestos
falamos do tempo, ponte entre o silêncio e o nada
ouve, quando não fores capaz de falar, toca-me


(de Maria Sousa)