Memórias de um passado recente

Será que é possível esquecer o passado? Talvez o passado seja intemporal, talvez o passado não seja passado mas sim um presente e um futuro essenciais à nossa sobrevivência.
Eu queria esquecer o meu…queria fazer com que cada minuto, cada segundo, cada suspiro que tenha ficado para trás deixasse de existir. Queria ser livre…despejar da minha memória tudo o que torna essa minha sobrevivência melancólica, tudo o que a faz ser um pouco mais sombria do que eu desejava.
Talvez hoje seja o dia, o grande dia, talvez a partir desta manhã eu consiga ser uma pessoa diferente ou regresse à pessoa que era antes desse passado, porque acredito que ela continua a existir, escondida por trás desse grande arbusto cujos ramos cresceram e há muito não me permitem ver o sol. Hoje decidi podá-los, decidi que vou permitir que a Primavera volte a entrar na minha vida…vai ser bom ouvir as andorinhas.
A verdade é que há dias assim, dias em que esquecemos que os outros nos podem magoar e caímos na estupidez humana, tentados por algo mais forte que qualquer passado, que qualquer dor, que qualquer sentimento…tentados por esse aglomerado de anseios e arrepios a que chamam de paixão.
Levanto os olhos no momento em que ele entrou no mesmo metro em que eu viajo. Traz uns ténis brancos com listas diagonais em preto. Os ténis foram a primeira coisa que vi. Depois o meu olhar envergonhado foi subindo e analisando as calças de ganga com a bainha dobrada, o casaco de pele, a t.shirt branca, o saco preto de tiracolo e o telemóvel que tinha na mão e para o qual olhava por entre as lentes negras dos óculos tipo aviador que lhe assentavam suavemente sobre o nariz. Não lhe vi os olhos, nem sequer reparei na cor do cabelo, mas detive cada pormenor da sua roupa na minha mente…no minuto a seguir as portas abriram-se e ele foi embora, continuando vidrado no seu telemóvel…e eu apaixonada despeço-me dele uma última vez.
Agora as minhas paixões são assim…demasiado céleres e extenuantes para serem de alguma forma levadas a sério. Eu continuo-o a dizer-me apaixonada mesmo sabendo de antemão que o amor não é assim. Sinto-me vazia, estagnada, a necessitar de misericórdia, mas sempre adversa à ideia de admitir que no fundo me tornei incapaz de sentir qualquer sentimento aproximadamente parecido com o amor que não fosse por mim. Estou cansada mesmo tendo feito a viagem toda sentada…saio na próxima paragem.
Os primeiros raios de sol que se focam sobre a minha face envidraçam-me as vistas há muito cegas pela falta de objectivos…faz-me falta ter uma meta e hoje decidi mudar isso. Sei, precisamente, para onde me levam os passos longos que dou sobre o piso de granito gélido da estação do metropolitano. Os saltos dos meus sapatos entoam. Levo a mão ao fundo da carteira pesada pelo molho de chaves dos cofres do trabalho e agarro o meu maço de tabaco. Depois acendo um com o meu isqueiro de prata e subo as escadas saboreando o prazer que o fumo do alcatrão me provoca ao deslizar pela garganta…

Sem comentários:

Enviar um comentário